Washington, D.C.
11:21 am
Ele olhava a foto atentamente, buscando por similaridades. A cor dos
cabelos, o formato da boca ou dos olhos lembravam vagamente o que
procurava.. Mas tantos outros antes daquele haviam demonstrado tão maior
semelhança... Tantos outros poderiam ter sido aquele por que procurava.
Mas não o eram.
Havia, porém, no caso específico daquela fotografia, algo definitivo.
Algo que apontava para aquele rosto na foto como "o rosto". Uma
espécie de identificação incontestável, o DNA.
WILLIAM VAN DE KAMP
NASCIDO EM 20/05/2001
FILIAÇÃO: ADAM VAN DE KAMP E SHANNON VAN DE KAMP
PROFISSÃO: AGENTE ESPECIAL - FBI
LOTADO NO DEPARTAMENTO DE PESSOAS DESAPARECIDAS EM WASHINGTON, D.C.
Walter Skinner não podia evitar o sorriso. Apesar de desconhecer os
verdadeiros pais, William seguira-lhes o caminho. Seria irônico, se não
fosse patético.
Há tantos anos o procurava, tantas outras fotos e fichas de meninos,
rapazes e homens feitos haviam passado pelas mãos de Skinner nos últimos
anos. Ele os selecionava por idade e data aproximada do nascimento, já
que, na maioria das vezes, os registros de adoção não estavam disponíveis.
Nenhum deles, no entanto, resistira à prova do DNA antes.
Aquele William Van de Kamp, cuja ficha viera parar espontaneamente em suas
mãos, finalmente, apresentava 98% de compatibilidade genética com Mulder
e Scully. Um percentual que não deixava dúvidas. Era ELE.
E estava bem ao alcance das mãos. À distância de um simples
telefonema...
Cercanias de Washington, D.C.
07:45 pm
- Vinte e dois! - anunciou a loura de mil dentes perfeitos na telinha da
TV.
Não, ainda não fora daquela vez. Quem sabe na próxima a sorte
finalmente sorrisse para ele, Wayne pensou. Como aquela loura... Seria ela
a mesma loura de dentes perfeitos que apresentava o sorteio da loteria há
vinte anos? Como poderia ela não ter envelhecido nem um único minuto em
todo aquele tempo? Ou teria a emissora de TV uma coleção de louras
exatamente iguais reservadas tão somente para apresentar aquele programa?
Wayne sorriu diante da idéia de um armário repleto de louras em vestidos
colantes.
Sem mover um único músculo a mais que os necessários, ele transformou o
cartão de loteria numa bola e o arremessou longe. Dog, deitado ao pé do
sofá encardido, tampouco se deu ao trabalho de checar o que era aquela
coisa que havia voado do sofá para se juntar à pilha de papéis que se
amontoava ao redor da lata de lixo.
Cão e homem se pareciam. Wayne e Dog eram companheiros de solidão e
abandono, desde o primeiro dia em que se encontraram.
O homem havia acordado, depois de uma bebedeira homérica, deitado no chão
imundo de um beco da cidade. O vira-lata negro lhe lambia a cara
dedicadamente. Wayne sorriu. Não sentia nojo ou repulsa. Apenas tristeza.
Enxotou o cão, ergueu-se da calçada e cambaleou pelo caminho de volta
para casa.
Até que teve a impressão de estar sendo seguido. Voltou-se rápido,
disposto a brigar, afinal, aquela era uma vizinhança perigosa, onde os
ataques a pedestres eram freqüentes. Mas qual! Não havia gangues ou
perigosos agressores atrás dele. Apenas o mesmo vira-lata negro de olhar
tristonho.
Wayne seguiu seu caminho. O cão seguiu Wayne. Por dias e dias. Até que o
homem o admitiu em sua casa. Era sempre uma companhia e Deus sabe quanto
Wayne sentia-se só naqueles dias.
Na falta de nome melhor, começou a chamá-lo Dog. E Dog ficou. Nada
exigia além de uma ocasional tigela de comida e uma saída diária. E
mesmo nisto era solitário, já que lhe bastava que Wayne abrisse a porta
para que o cão saísse e a abrisse outra vez quando voltasse. E Dog
sempre voltava. E Wayne, de certa forma, gostava de saber que o cão
estava lá. Fazia a vida menos insípida pensar que ao menos o cão o
estaria esperando.
Ultimamente, havia sempre um nó apertando-se na garganta de Wayne Garcia.
Era um misto de angústia e melancolia, uma sensação indefinível,
resultante da constatação. A que ponto havia chegado! Nunca fora
exatamente um bastião da moralidade, um pilar da comunidade. Mas houve um
tempo em que podia se dizer minimamente respeitável. Tivera um trabalho
de relativa importância como bombeiro do condado. Chegara mesmo a salvar
algumas vidas, naquela época. Até que tudo começara a desandar, em
algum momento. Ele só não sabia precisar quando.
Foi até a geladeira em busca de algo gelado para beber, mas não havia
nada. Contentou-se com um resto de cerveja quente e choca de uma garrafa
largada há não se lembrava quantos dias sobre a pia.
O líquido desceu amargo e pegajoso pela garganta, como um gole de óleo
de rícino. Um travo de ranço ficou na língua. Talvez a cerveja
estivesse estragada... Talvez fizesse mal e até mesmo o matasse. Quem se
importava? Dog... O cão certamente se importaria. Wayne afagava sua cabeça
peluda, quando seus olhos foram atraídos pelo noticiário na TV. Um rosto
conhecido chamou sua atenção para a imagem. O rosto de um homem que ele
não via há anos.
- O FBI continua investigando a denúncia de possíveis atentados
terroristas, no Oregon. - dizia o apresentador. - Segundo o coordenador da
força tarefa especial do Bureau, John Doggett, supostos grupos
terroristas estariam usando pequenas cabanas de caça como esconderijo, na
floresta, em regiões próximas à fronteira com o Canadá...
John Doggett. Wayne se lembrava bem dele. Um homem bom, íntegro. Um dos
poucos assim que conhecera.
Recordava de Doggett tentando, com as mãos nuas, libertá-lo dos
escombros fumegantes que o soterraram em 2012. De como o visitara, dias
depois, no hospital, oferecendo, também, solidariedade aos diversos
bombeiros feridos naquele incêndio. Um estranho incêndio que nunca
tivera suas verdadeiras causas comprovadas.
A versão oficial atestava que tudo fora resultado do acúmulo natural dos
gases dos esgotos em alguns bueiros espalhados pela cidade. Uma fagulha e
pronto! Um por um, os bolsões foram explodindo e espalhando o caos por
toda parte. Outros falavam em vazamento, por excesso de pressão, nas
tubulações subterrâneas de gás que atravessavam toda a área
metropolitana. Havia, porém, quem dissesse tratar-se de um atentado
terrorista. Juravam ter visto bolas de fogo cortando os céus, naquela
noite, mísseis, diziam.
Wayne não acreditava em nada daquilo. A bem da verdade, jamais se
importara em obter uma explicação. Tudo o que sabia era que aquela noite
de 22 de dezembro de 2012 havia lhe custado muito caro. Um milhão de dólares,
na forma de um bilhete premiado de loteria destruído pelo fogo, e seu
emprego como bombeiro.
A despeito do fato de ter se recuperado espantosamente rápido, em vista
da gravidade e da extensão de seus ferimentos, o condado decidiu
aposentar Wayne do serviço de bombeiro. Talvez temessem alguma ação
legal da parte dele, uma vez que o traje "à prova de fogo" que
usava ficara completamente destruído pelas chamas. Deram-lhe uma pequena
gratificação, uma pensão minguada e só.
Wayne ainda tentou, na justiça, sua reintegração ao serviço. Mas o
condado alegou que seu confuso estado mental, corroborado pelo relato da
aparição, na ocasião do acidente, de um menino que ninguém mais vira e
agravado por seu problema recorrente com álcool, o incapacitava para as
responsabilidades inerentes ao trabalho. Wayne perdeu. O processo, o
emprego, a dignidade.
Talvez tivesse sido esse o ponto em que sua vida começara a se tornar no
caos que era agora. Talvez, por ocasião da morte de sua mãe, abandonada
por ele tempos antes, num asilo de velhos.
Nunca se dera bem com a mãe. Especialmente, depois que ela lhe revelara,
alguns anos antes, a verdade sobre seu pai. Uma verdade que Wayne não
podia aceitar.
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O mês era abril. O ano, 1981.
Mariangeles Dolores Garcia era uma jovem bonita de vinte e poucos anos. A
ascendência hispânica revelava-se de modo gracioso em cada traço de seu
rosto e de sua personalidade.
Angel, como o pai a chamava, era presença sempre requisitada nas festas
do bairro hispânico de San Antonio, no Texas. Apesar de acintosamente
cortejada pelos rapazes, era uma moça recatada, católica fervorosa e
admiradora, como sua mãe, do mais heróico dos caubóis épicos, o grande
John Wayne. Levava uma vida tranqüila e tinha um bom emprego como
telefonista numa conceituada firma de advocacia local.
Até o dia em que desapareceu, em abril de 1981. Sem deixar rastros.
Simplesmente sumiu, em algum momento entre o final de um cansativo dia de
trabalho e o caminho de casa.
A família, desesperada, deu parte de seu desaparecimento à polícia e
percorreu hospitais e necrotérios, durante semanas, à procura da moça.
Mas nada encontrou. Não havia testemunhas, não havia pistas. Era como se
Angelita houvesse se desfeito em pleno ar.
Finalmente, após seis meses, Arturo Gracia, o pai, desistiu das buscas e,
com lágrimas nos olhos, encomendou, ao padre da paróquia do bairro, uma
missa em intenção da alma da filha. Arturo convencera-se, a muito custo,
de que sua doce Mariangeles estava morta.
Qual não foi sua surpresa, quando, ao regressar da missa, com o rosto
inchado de tanto pranto, encontrou Mariangeles sentada no sofá da sala.
A moça tinha os olhos fitos no branco de uma parede vazia e um quê de
inexpressivo estampava-se em seu rosto. Estava magra, pálida, descabelada
e... grávida!
Arturo, ensandecido pela vergonha, esbravejou e quebrou cada peça de louça
e mobília em que conseguiu colocar as mãos. Até que caiu, apoplético.
Nunca mais se recuperou do choque de encontrar "su angelito"
naquele estado e morreu poucos meses depois sem soltar mais um único
suspiro sequer.
Consuelo, a esposa, juntos os cacos de louça, remendou os móveis e
cuidou em manter marido e filha vivos e alimentados.
Mariangeles, tal qual o pai, vegetou em total apatia até que vieram as
primeiras dores do parto. Então, gritou e chorou e deu à luz um belo e
saudável menino, a quem Consuelo deu o nome de seu ídolo nas telas.
A partir deste dia, Mariangeles voltou a ser a mesma Angelita de antes,
alegre, descontraída e trabalhadora. Cuidava zelosamente de Wayne, a quem
dedicava todo seu afeto. Não casou, nem jamais disse palavra sequer a
respeito de seu misterioso desaparecimento.
Wayne cresceu acreditando nas estórias da avó, de que seu pai havia sido
um canalha pelo qual Angel se apaixonara e que a havia abandonado quando a
descobrira grávida. O menino dedicou todo seu ódio à figura de homem
imoral e sem caráter que julgava ser seu pai.
Ao mesmo tempo, sentia-se sufocado pela intensidade dos cuidados que lhe
dispensavam a mãe e a avó. E, como bom menino rebelde que era, as
detestava também por causa disso de uma maneira que só as crianças
super protegidas sabem detestar.
Cresceu assim, dividido entre a figura de um odioso pai imaginário e o
abominável excesso de zelo de Consuelo e Mariangeles. Tão logo julgou-se
adulto, tratou de conseguir um emprego qualquer que o levasse para algum
lugar bem distante de San Antonio. Assim, viera parar em D.C., onde
juntou-se ao corpo de bombeiros local.
Isolou-se das duas, a quem não dispensava mais do que um eventual cartão
de Natal, até que, dez anos antes, recebera um telefonema. Por entre os
soluços, reconheceu a voz da mãe, do outro lado da linha, comunicando a
morte de Consuelo. Havia tal desespero em sua voz que conseguiu tocar o
coração de Wayne. Ele tomou o primeiro avião para o Texas e foi confortá-la.
Mariangeles estava assutadoramente magra e pálida quando Wayne a viu,
sentada no mesmo sofá da sala onde, trinta e tantos anos antes, Arturo a
havia encontrado. E chorava tanto que Wayne a apertou contra o peito e
beijou seu rosto e seus cabelos desgrenhados, do mesmo modo como ela fazia
quando ele era apenas um garotinho.
Quando finalmente cessou o pranto, conversaram e Mariangeles contou ao
filho o que guardara para si mesma durante tanto tempo. A verdade sobre
seu desaparecimento.
- Era sexta feira, me lembro bem, dia de pagamento. Eu havia recebido um
aumento naquela semana. O primeiro aumento de minha vida! Eu estava tão
feliz...
Angel sorria, um sorriso tímido de menina, como se ainda tivesse vinte e
poucos anos.
- Eu era uma moça vaidosa. Pensava no vestido novo que poderia comprar
com aquele dinheiro a mais. Pensava em cortar os cabelos num corte da moda
ou alguma coisa assim. Numa TV para meu quarto... Ah! Eu estava tão
feliz...
O sorriso, que iluminava o semblante cansado de Angelita, fez com que
Wayne se lembrasse de como a mãe fora bonita na juventude. De como
costumava ficar orgulhoso com a admiração que sua beleza despertava nos
coleguinhas de escola.
- As meninas que trabalhavam comigo falaram de uma festa, num clube na
periferia da cidade. Eu não queria ir, mas elas insistiram tanto... Era
uma festa muito animada. Havia música, muita gente dançando. Eu gostava
tanto de dançar e estava tão feliz, que nem vi a hora passar. Quando dei
por mim, já era tarde, quase meia noite. Procurei minhas amigas, mas não
pude encontrá-las. O único conhecido que vi estava bêbado demais para
que eu arriscasse uma carona. Resolvi tentar um táxi ou um ônibus, mas
era preciso andar cerca de quatro ou cinco quadras até uma avenida mais
movimentada.
O sol, que se punha lá fora, enchia a sala com sombras alongadas. Wayne
as observava e recordava de como, em criança, costumava fugir delas por
temer que elas o engolissem. A voz de Mariangeles soava baixa no silêncio
de fim de tarde.
- As ruas estavam desertas. Era uma noite escura e eu não conhecia muito
bem aquela parte da cidade. Acho que me perdi... De repente, estava em um
descampado. Havia uma estrada perto, eu acho... Vi as luzes vindo ao longe
e imaginei que fosse um carro se aproximando. Mas as luzes não seguiam a
estrada. Algumas vezes deslizavam sobre o campo, outras faziam ziguezagues
muito rápidos a alguns metros do chão sobre a estrada... Fiquei com
medo, quis correr... Minhas pernas não obedeciam... Eu não conseguia
despregar os olhos da luz, cada vez mais forte, mais clara... Se
aproximando mais e mais... Até que ela me envolveu por completo e não
senti mais o chão sob meus pés.
Os lábios dela tremiam, assim como a voz. Alisava nervosamente dobras
imaginárias em sua saia, como se sua vida dependesse daquilo.
- A próxima coisa de que me lembro são os procedimentos... os aparelhos
estranhos... o frio, a dor... aquelas criaturas de branco, sem rosto... me
espetando e cortando e ferindo... A claridade e a dor... tanta dor...
Na penumbra da sala, Wayne podia ver, no semblante contraído da mãe, a
dor estampada em seus olhos. Como se revivesse, através das palavras,
todo o sofrimento que relatava.
- Um dia, não sei quanto tempo se passou ou como aconteceu, me vi sentada
aqui mesmo, neste sofá. E papai gritava nomes e quebrava tudo, como um
louco... Eu não entendia o que estava acontecendo e não entendi, até o
momento em que você nasceu... Então, compreendi que, de alguma forma,
você era fruto de tudo aquilo... Quis odiar você, meu filho, por toda a
dor sofrida... mas, no momento em que vi seu rostinho gorducho pela
primeira vez, percebi que não seria capaz. Acima e apesar de todo o
sofrimento, você era meu! Meu filho! Meu bebê!
Havia um quê de orgulho mesclado com loucura no tom de sua voz que
inquietou Wayne.
- Nunca contei a ninguém sobre isso... Nem mesmo a sua avó. Quando ela
inventou todas aquelas estórias sobre seu suposto pai, eu deixei. Sabia
que ela não seria capaz de compreender a verdade.
A voz de Mariangeles não era mais que um sussurro agora. Ainda assim, era
como se ela gritasse aos ouvidos de Wayne.
- Eu tinha medo que alguém soubesse a verdade, mesmo mamãe. Tinha medo
que eles quisessem tomar você de mim... Eles tentaram, sabe? Muitas
vezes. Vinham à noite até mim e diziam coisas sobre você. Sobre outros
como você... Uma raça de crianças especiais, perfeitas, diferentes das
outras crianças. Falavam sobre a missão que vocês teriam... Mas eu
lutei contra eles, resisti a eles. Eles não o levaram. Eu os venci! Você
é meu, Johnny, meu bebê. Sempre!
Wayne sentia os olhos da mãe transbordando uma ternura pegajosa e
ensandecida em sua direção, de tal forma, que o menino rebelde e super
protegido despertou novamente dentro dele. O velho ódio reacendeu em seu
coração.
- Missão? Especial? Quem? Eu? - ele esbravejava, andando de um lado para
o outro pela sala. - Você está louca! Sempre esteve. John Wayne Garcia só
foi especial e perfeito nos delírios de grandeza de duas velhas loucas
como você e vovó. Eu sou um nada, mãe. Um fracassado. Apenas isso, um
perdedor.
Já era noite, lá fora. A pouca claridade que havia na sala era a que se
infiltrava pelas frestas da persiana, vinda dos postes de iluminação da
rua. Na semi-obscuridade, Wayne prosseguia em sua jornada enfurecida de um
lado para o outro do cômodo exíguo, sem se importar com os tropeções
que dava nos móveis.
- Pior que louca! Minha mãe é uma meretriz. Uma rameira que inventa estórias
fantasiosas para encobrir suas sem-vergonhices. - ele gritava. - Não sei
o que é pior. O pai canalha que minha avó inventou ou a mãe prostituta
e a avó louca que são minha realidade...
Wayne gritava, furioso, toda sua frustração pela vida. Transpirava ódio,
ressentimento e palavras rudes. Maldizia a mãe, a avó, a vida, Deus.
Embora, no fundo, maldissesse a si mesmo. Os impropérios e acusações
que dirigia a Angel eram, na verdade, um espelho do modo como Wayne
encarava a si mesmo. Era ele próprio a verdadeira vítima de sua ira.
Mariangeles, no entanto, nada compreendia daquilo. Limitava-se a
assisti-lo a andar e gritar todas aquelas coisas sem outra reação que não
as lágrimas que banhavam sua face. Até que Wayne cansou-se, virou-lhe as
costas e bateu a porta atrás de si, deixando Angelita atônita e inconsolável.
Não voltou a procurá-lo. Tinha, ela também, algum orgulho restante.
Tampouco Wayne preocupou-se com ela, até que, três ou quatro meses
depois, recebeu o telegrama de uma prima do Texas, avisando que
Mariangeles sofrera um derrame. Wayne respondeu com outro telegrama no
qual dava instruções à prima para que internasse a mãe em um asilo e
lhe mandasse a conta.
Depois disso, pagava cada conta que lhe enviava o asilo, fosse qual fosse
o sacrifício necessário para conseguir o dinheiro. Acreditava que, com
isso, cumpria sua obrigação. Jamais quis saber da mãe outra vez.
Rasgava sem ler qualquer correspondência recebida do Texas.
Um dia, fora surpreendido pelo toque da campainha da porta. Era a prima,
que viera avisá-lo da morte de Angelita. Wayne não se chocou ou sentiu
tristeza ou remorso. Alívio foi a palavra mais apropriada para descrever
seu estado de espírito, naqueles dias.
Porém, as palavras de Angel, naquele final de tarde, em San Antonio,
ainda o assombravam, na solidão das madrugadas. Ele tentava afogá-las
numa garrafa de bebida. Mas elas sempre voltavam.
Wayne quisera, sim, ser a pessoa especial que a mãe tanto sonhara. Mas
era tão somente um perdedor. Um bêbado fracassado.
É certo que a vida nunca fora exatamente gentil e justa com Wayne. Mas
ele jamais se perguntara até que ponto a recíproca seria verdadeira, o
quanto de oportunidades teria ele dado à vida e ao mundo para que estes o
ajudassem.
Georgetown
09:47 pm
"My heart is sad and lonely
For you I cry
For you, dear, only
Why haven't you seen it
I'm all for you
Body and soul"
A voz singular de Billie Holiday preenchia baixinho o silêncio. A
penumbra, iluminada apenas pela suave claridade das velas acesas, era
envolvente como uma carícia.
Sari levou aos lábios o cálice e sorveu um breve gole do líquido cor de
rubi em seu interior. O vinho desceu aveludado por sua garganta,
espalhando, quase que imediatamente, a mesma sensação de veludo por seu
peito e braços e pernas. Ela recostou outra vez a cabeça lânguida
contra o peito de William.
Um bom vinho, as canções de Lady Day, a companhia de quem se ama. Certas
coisas não têm idade, não estão sujeitas ao tempo.
Os olhos verdes do rapaz contemplavam absortos a coleção de cristais na
estante. Ele parecia distante um milhão de quilômetros do aconchego
daquela sala.
- Um centavo por seus pensamentos.
Ele piscou, como que despertando de um transe.
- Hã?
- Você parecia tão longe... No que pensava? - indagou Sari, deslizando
os dedos suavemente pelos contornos do rosto de William.
Ele esboçou um meio sorriso.
- Talvez você fique com ciúmes... Mas eu pensava na agente Reyes.
- Sua parceira?
Ele meneou a cabeça, afirmativamente.
- Sim... Essas velas, os cristais, os sinos de vento... Todas estas coisas
têm muito a ver com o modo como a agente Reyes parece ver o mundo... -
ele hesitou por um momento. - Trabalhamos juntos há pouco tempo... mas a
impressão que ela me passa, pela forma de encarar os fatos sob pontos de
vista, no mínimo, incomuns, eu diria... Não sei explicar. Ela é
diferente.
Sari compreendia. E como compreendia! Afinal, não fora ela, durante tanto
tempo, "diferente" também? Sorriu compreensiva.
- Alguma pista de seu paradeiro?
- Não. E acho que é isso o que me faz sentir mais culpado... Pensar
nela, lá fora, perdida em algum lugar, enfrentando sabe-se lá que
dificuldades...
- Você abandonou a hipótese de que ela tenha fugido, como queriam fazer
acreditar, no princípio?
- Não sei... Não vejo muito sentido numa fuga, mesmo sabendo que Reyes
estava tentando esconder algo de mim sobre o caso que investigávamos. E,
sinceramente, não acredito que ela tenha qualquer coisa a ver com os tais
arquivos que desapareceram... Não sei porque, mas não consigo acreditar
nisto e queria poder prová-lo aos que desconfiam da agente Reyes.
Ele calou-se por um instante, enquanto sorvia um gole do vinho.
- Mas, ao invés de fazer alguma coisa a esse respeito, de estar lá fora,
nessa noite fria, procurando por ela, eu estou aqui, no conforto da sala
de seu apartamento, bebericando um bom vinho ao som de um velho jazz, ao
lado de minha namorada...
Sari sorriu intimamente. "Minha namorada", ele dissera... Ela,
namorada de William... Ainda não se acostumara totalmente à idéia de
realização de seu sonho adolescente. O sorriso talvez tenha lhe aflorado
ao rosto sem que sentisse, uma vez que a reação do rapaz foi traçar-lhe
levemente os contornos da boca com as pontas dos dedos.
Seus lábios se uniram num beijo suave. Sari deixou-se envolver ainda mais
pelos braços do amigo. Do namorado. Do sonho de adolescência.
Seu olhar se perdeu nas chamas das velas, no fogo que lhe despertava
recordações nem de longe tão agradáveis como era aquele momento.
Recordações de dezembro de 2012.
23 de dezembro de 2012
01:24 am
Por todo lado, se ouvia o alarido de vozes e o crepitar das chamas. Num
raio de cinco quilômetros, toda árvore, casa ou celeiro queimava. E o
fogo se alastrava rápido, empurrado pela brisa leve que começara a
soprar.
Todos os bombeiros da cidade e das comunidades vizinhas trabalhavam
freneticamente no combate ao incêndio. Não havia homem, mulher ou criança,
habitante das proximidades, que não tivesse sido tocado de algum modo
pelo tragédia.
Rishi, Jaya e Sari Kapoor não eram exceção. Munidos de pás e enxadas,
ajudavam os bombeiros a abrir uma clareira entre seu quintal e as
labaredas que lambiam o bosque e avançavam céleres em direção à casa.
Vizinhos das casas próximas acorriam em seu socorro, cavando, desbastando
o mato, carregando mangueiras, lutando contra a voracidade das chamas.
Tão importante quanto o esforço, era a prece silenciosa que ocupava o
coração de cada um dos envolvidos naquela batalha. A prece que os fazia
um só na esperança de salvar seus lares.
Sari manejava com dificuldade a enxada, grande demais para seus quase onze
anos. Seus braços doíam, os olhos e o nariz ardiam com a fumaça. No
entanto, não reclamava. Sabia perfeitamente do perigo que corriam sua
casa, as bonecas, suas vidas. Sabia que o fogo não a pouparia
simplesmente porque tinha boas notas na escola ou porque fosse uma menina
bem comportada.
Não, nem isso. Não era mais uma menina. As mudanças que haviam começado
a se operar em seu corpo, claramente sinalizadas pela incômoda chegada da
primeira menstruação no dia anterior, faziam de Sari uma adolescente,
agora.
E que maneira de começar a adolescência! Primeiro, o trágico episódio
daquela tarde, no riacho. O escárnio, a vergonha. Depois, o incêndio, a
luta, a ameaça que avançava na forma de chamas sobre sua vida. O futuro
se descortinava sombrio diante da garota.
Mal percebeu quando lhe tocaram o ombro.
- Descanse um pouco, menina. - disse o homem atrás dela. - Eu substituo
você um pouco na enxada. Do outro lado da rua, há pessoas com leite e
biscoitos.
Por mais preocupada que estivesse, Sari sentia-se realmente cansada e a idéia
de leite e biscoitos lhe pareceu das mais atrativas. Entregou, agradecida,
a enxada ao estranho e encaminhou-se a passos lentos ao grupo de voluntários
que se reunia na calçada vizinha.
As mãos cheias de bolhas, resultado do desastrado manejo da pesada
enxada, tremiam ao levar o copo até a boca. Os olhos negros não
conseguiam despregar-se das chamas que continuavam a avançar incansáveis
pelo bosque. A menina entoava mentalmente um mantra, na vã tentativa de
acalmar seu coração. Mas isso parecia impossível. As vozes das pessoas,
seu esforço e sofrimento eram intensos demais para serem sobrepujados
pelo mantra.
- Nunca vi nada igual! - dizia um homem. - Todos os transformadores da rua
foram explodindo, um a um, em seqüência.
- Sim. - assentia sombriamente seu interlocutor. - Disseram que foi um
surto de alta tensão na rede elétrica. Ou uma sobrecarga na usina de força,
não sei bem...
- E como o fogo se espalhou rápido! - atalhou um terceiro. - Num momento,
era uma fogueirinha e, no instante seguinte, já tomava conta de todo o
meu celeiro.
Os rostos sujos dos três homens se contraíram dolorosamente. Cada um ali
havia perdido algo: sua casa, seu celeiro, ambos. Até então, não havia
notícias de vítimas fatais. Diversas pessoas, porém, já haviam sido
atendidas com queimaduras leves ou intoxicações.
Com um nó na garganta, Sari insistia em uma prece silenciosa. Para que os
relatos angustiados das pessoas à sua volta não se tornassem sua própria
realidade. Para que o fogo se apagasse ou mudasse de direção por
milagre, indo para longe de sua casa. Como num prenúncio de que suas
preces seriam atendidas, a brisa leve que soprava, empurrando as chamas
para cada vez mais perto, subitamente extinguiu—se. A menina não
pode conter o suspiro de alívio que lhe brotou do peito.
- Sim, meu bem. É um bom presságio.
Sari voltou-se para o lado, em sobressalto. Era a mãe de William quem lhe
falava. Tinha os cabelos desgrenhados e o rosto sujo de fuligem. Apesar da
suavidade no tom de sua voz, seus olhos estavam inchados de tanto pranto e
uma expressão de dor e desespero estampou-se em seu semblante.
- Pena que tarde demais para mim e os meus... - continuou a mulher como
que para si mesma. - Tarde demais. Tudo perdido... tudo perdido... - sua
voz sumiu num murmúrio afogado pelas lágrimas.
Era tanta, tanta dor que trazia no rosto, que Sari temeu o pior.
- Sra. Van de Kamp, - disse num fio de voz, tomando a mão da mulher entre
as suas, - e William... onde está?
- Lá... - respondeu, meneando a cabeça na direção do fogo, num gesto
vago.
O coração de Sari se contraiu, suas mãos se crisparam, apertando as da
mulher.
Morto! Não podia acreditar que William estivesse morto! Seu amigo. Seu único
possível amigo. E ela nunca tivera oportunidade de dizer o quanto gostava
dele...
Um turbilhão de idéias loucas tomou de assalto a cabeça da menina.
Pensou no amigo ardendo no fogo, preso sob um escombro qualquer. Em seu
sofrimento, na agonia que devia ter sentido nos momentos finais, antes que
a morte lhe arrancasse do peito os últimos sopros de vida. Pensou no espírito
de William a vagar desorientado pelo limbo, para todo o sempre, sem nunca
alcançar o nirvana. E na solidão de que seria presa sua alma, à deriva
no nada, sem amigos para confortá-lo ou uma prece que lhe indicasse o
caminho para o repouso.
Sari desejou ser capaz de rezar pelo menino. Sabia o quanto a fé poderia
ajudar uma alma perdida a encontrar seu rumo. Apenas, não tinha forças
para tanto. O sentimento de perda era infinitamente maior do que ela
poderia suportar e as lágrimas não tardaram a brotar em torrentes de
seus olhos. Deixou-se ficar, abatida, os ombros encurvados, o olhar
perdido no fogo.
- Mamãe!
Agora Sari tinha a impressão de ouvi-lo chamar à distância.
- Mamãe! - insistia a voz do menino. - Sari!
A visão de Sari, toldada pelas lágrimas, viu surgir, do outro lado da
rua, como que saído do inferno ardente das chamas, o vulto de William que
caminhava em sua direção. Estava sujo e chamuscado. Mas vivo!
Num rasgo de completo alívio, ela levantou-se de um pulo, correu até o
garoto e o estreitou nos braços. O pobre retribuiu o abraço, atônito,
incapaz de compreender o porquê de tanta alegria.
- Ora, ora! Mas quanta felicidade...
Foi somente quando ouviu o sarcasmo na voz de Alan, parado dois passos atrás
de William, que as lembranças da tarde anterior voltaram à mente de
Sari.
"Sari fez porcaria nas calças, Sari fez porcaria nas calças!",
ecoava ainda dolorosamente o coro de crianças em sua memória.
O escárnio, a vergonha. Nem a mais pura alegria poderia sobreviver a
eles. Com um repelão, a garota desvencilhou-se dos braços de William e
correu em direção ao incêndio e às pessoas que trabalhavam para não
deixá-lo atingir sua casa. Ela ainda ouviu a voz do menino, chamando seu
nome. Mas não se atreveu a olhar para trás.
Tomando uma pá que encontrou largada no chão, Sari cavou e cavou com
todo empenho, não parando nem mesmo quando as bolhas em suas mãos se
romperam e o sangue manchou o cabo da ferramenta.
Um dia como aquele precisava ser apagado de sua vida. Mesmo que fosse à
custa de sangue, lágrimas e fogo.
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Já era tarde quando William deixou o apartamento de Sari, naquela noite.
Tarde demais, talvez, para que algo pudesse ser feito. Ainda assim, ela
preferia tentar.
Após um breve e monossilábico telefonema, Sari vestiu um casaco qualquer
e saiu. No táxi, as ruas vazias da capital desfilavam rápidas pela
janela. Mas a moça não as via. Estudava as possibilidades.
Algo precisava ser feito e rápido. A ameaça era maior e mais próxima do
que se imaginava. Não havia tempo para hesitações, diante do cenário
que se afigurava.
Sari mal percebeu quando táxi parou diante do belo prédio antigo. Pagou
ao motorista e saltou apressada, caminhando rápido em direção às
grandes portas douradas para fugir do vento frio.
Subiu ao último andar, ainda insegura sobre o que fazer. Nenhuma atitude
parecia forte o bastante para o que precisava enfrentar e sua mente
trabalhava num ritmo febril na busca de outras alternativas.
Após uma leve batida, ela abriu a porta do escritório, sem esperar ser
convidada para entrar. A temperatura era agradável na sala ampla e
confortável.
A cada passo que dava em direção à grande escrivaninha que ocupava um
lugar de destaque próximo à janela, aumentava a certeza de Sari sobre o
que deveria fazer. Parou a menos de um passo da mesa.
- E, então? Qual é sua decisão? - perguntou o homem sentado do outro
lado da escrivaninha, enquanto limpava as lentes dos óculos, afetando
descaso.
Sari respirou fundo antes de responder, com foz firme:
- Pode contar comigo.
- Ótimo! Sente-se, por favor. - convidou Walter Skinner, sorrindo
satisfeito.
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