Perfect Strangers

parte 1


J.J. amava a perfeição. Era apaixonadamente devotado a tentar cercar-se dela. 

Nas prateleiras de seu mercadinho, sempre impecavelmente limpo e cheirando a flores, as mercadorias eram dispostas harmoniosamente por cor, tamanho, formato da embalagem. Uma caixa ou uma lata deixadas fora do lugar por um freguês incauto eram imediatamente recolocadas em posição para não ferir a simetria. 

As gavetas de roupas, os cabides no armário, seu modo de se vestir sempre com peças do mesmo tom eram reflexos desta mania de perfeição. 

J.J. também fazia sua parte para levar o mundo à perfeição. Freqüentava a igreja aos domingos, fazia caridade e trabalhos voluntários, defendia a natureza. 

A vida tranqüila na cidadezinha de interior lhe permitia dedicar o tempo necessário a essa busca por um mundo perfeito. 

Seu maior defeito, aos seus próprios olhos, o vício de fumar, ele abandonara dez anos antes, à custa de muito esforço. Substituíra os dois maços de Morley que fumava religiosamente todos os dias por uma hora de jogging matinal. Religiosamente. 

Mas o que fazer quando todo o universo à sua volta conspira contra a perfeição? Será essa pitada de caos que tempera nosso cotidiano um ingrediente essencial ao funcionamento do mundo? Pode o mundo perfeito sobreviver aos caos? 



22 de dezembro de 2012 
05:00 da manhã 

J.J. acordou com o despertador berrando em seu ouvido. Ao contrário do normal, estava atrasado. Ao contrário do normal, também, ele não saltou da cama imediatamente. Deixou-se ficar, enquanto tentava decifrar a causa daquela sensação que lhe oprimia o peito. 

Lá fora, ainda estava escuro. Uma brisa quente agitou a cortina, ao penetrar no quarto pela janela aberta. Estava quente, quente demais para dezembro. Por todos os cinqüenta e um anos de sua vida ele morara em Oscuro, um dos lugares mais quentes do Novo México. Mas não tinha recordação de qualquer outro inverno tão quente quanto aquele. 

Talvez fosse aquilo o que o incomodava, talvez fosse o calor que lhe causasse aquela sensação de agonia. Ou as costeletas de porco que Jane Sue preparara para ele no jantar da noite anterior. Sim, as costeletas, deliciosas como sempre, indigestas como nunca. 

Melhor tomar um anti-ácido antes de sair para o jogging matinal, ele pensou, enquanto se levantava da cama com todo cuidado para não acordar a esposa. 

Antes de sair, ainda deu uma última olhada em Jane Sue, profundamente adormecida, e no céu completamente sem nuvens, iluminado pela primeira claridade da manhã que já se infiltrava suavemente no quarto. 

Aquele tinha tudo para ser um dia perfeito. 



07:00 da manhã 

A melódica sonoridade do mantra e o perfume pungente do incenso convidavam à meditação. Assim como invocava à reflexão a suavidade da luz da manhã cuja claridade feérica era filtrada pela fina cortina de seda da sala de oração. A gentileza domando a fúria. 

Naquela manhã, porém, Sari não conseguia se concentrar. O que normalmente para a menina era algo trivial, o desligar-se do mundo material e deixar a mente vagar em busca do nirvana, naquele dia lhe parecia impossível. 

Apesar da pouca idade, Sari completaria onze anos dentro de três dias, a menina sempre tivera facilidade para a meditação. Fosse pelo hábito, adquirido desde muito pequena, de participar das preces com os pais, fosse por algum dom inato, bastavam a ela uns poucos minutos em silêncio, o olhos fechados, para que sua mente se distanciasse do corpo material. Nestes momentos, por vezes, o pensamento ia tão longe que Sari julgava avistar no horizonte a suave luz dourada que ela acreditava ser o nirvana. 

Mas não era assim naquele dia. Pelas pálpebras semicerradas, os olhos negros de Sari bailavam em suas órbitas sem fixar-se em nada. Voejavam da chama alaranjada das velas para as brasas vermelhas dos bastões de incenso e para o semblante grave do pai, concentrado na oração. Detinham-se, por um momento, no tremor dos lábios da mãe ao entoar o mantra e, de lá, dardejavam rápidos para o sorridente Buda de madeira escura que repousava sobre a mesinha. Nada era capaz de trazer-lhe a tranqüilidade necessária à meditação. 

- Acalme seu espírito, - ela insistia mentalmente, repetindo as palavras que o pai sempre lhe dizia. 

A inquietude, no entanto, dominava seu espírito de maneira incontrolável. 

Talvez fosse a antecipação do dia de festa na escola, o último antes do recesso de final de ano, o que a inquietava. Um dia que tinha tudo para ser divertido, cheio de jogos, brincadeiras e divertimentos. 

Talvez fosse a proximidade de seu aniversário. Sari não gostava de aniversários, do seu, em particular. Não que não gostasse de ficar mais velha. Pelo contrário, sofria da mesma impaciência infantil que compele as crianças a desejarem se tornar adultas o quanto antes. 

Seu problema era com a data de seu aniversário. 25 de Dezembro, Natal para os cristãos. O melhor dia do ano para se fazer aniversário, se você não quiser ser lembrado. O que, obviamente, não era o caso de Sari. 

A menina desejava, sim, ser lembrada. Não, como lhe acontecia agora, por ser diferente. Não pelo tom mais escuro de sua pele ou pelo negro dos cabelos muito lisos e dos olhos amendoados. Não por ser a menina mais inteligente ou por tirar as melhores notas de sua classe. 

Sari queria ser lembrada por ter amigos. Mas isso era difícil demais para ela. 

Por isso, Sari mergulhava mais e mais fundo nos estudos e entregava-se com afinco à prática de sua religião. 

Quem sabe assim, ela conseguiria fazer daquele um mundo melhor para as outras pessoas? 

Quem sabe assim, ela alcançaria o nirvana, a suprema perfeição? 


Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

A Décima Temporada é trazida a você por Subsolo.org, com patrocínio de Patê de Fígado Eugene Tooms. Se você é vegetariano não sabe o que está perdendo. Patê de Fígado Eugene Tooms. Faça tudo para provar um pouco.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Agora voltamos com nossa programação exclusiva.